quinta-feira, junho 17, 2010

O processo

Um pedido de desculpas foi o que bastou para encerrar um processo crime (por agressão) com 7 anos, ao qual fui chamado hoje como testemunha. (A justiça Portuguesa não pára de me surpreender.) Nem eu me lembrava da cara do queixoso, nem este se lembrava da minha cara. Estivemos inclusive quase uma hora, na mesma minúscula sala de testemunhas, em silêncio. A vista sobre o Parque das Nações e um livro sobre Cálculo Variacional foi o que me salvou do tédio da espera.

Entretanto, o queixoso é chamado pela advogada, voltando à sala com um sorriso meio-disfarçado na cara. Minutos depois, uma funcionária judicial veio anunciar o resultado: o queixoso tinha desistido do processo.

Neste momento eu ainda não tinha percebido que esse homem meio-sorridente era nem mais nem menos quem, há 7 anos atrás, tinha visto chegar ao pé de mim, a sangrar dos braços e a deitar-se no chão, após ter sido agredido por um pescador, enquanto andava de biciclera. Foi em Belém, perto da ponte, que avistei ao longe esta irreal cena de agressão por parte de um pescador, usando um suporte de cana de pesca.

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No retorno da Campus da Justiça para a estação de metro, encontro uma Almedina. Não resisto, obviamente, a entrar. Trouxe, em jeito de compensação pela hora perdida, um livro de contos de Lispector e um livro de ensaios de Kundera. Ao folhear este último encontro duas pérolas, com as quais encerro este post. (Como é bom reencontrar Kundera, após tanto tempo de ter lido A Insustentável Leveza do Ser.)

Quando Deus abandonava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e a sua ordem de valores, separado o bem do mal e dado um sentido a todas as coisas, Dom Quixote saiu de casa e já não estava em condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz supremo, apareceu subitamente com uma terrível ambiguidade; a única verdade divina decompôs-se em centenas de verdades relativas que os homens partilham entre si. Assim, o mundo dos tempos modernos nasceu e o romance, na sua imagem e modelo, nasceu com ele.

[...]

O homem deseja um mundo em que o bem e o mal sejam nitidamente discerníveis, porque nele há o desejo, inato e indomável, de julgar antes de compreender. Sobre este desejo são fundadas as religiões e as ideologias. Estas não se podem conciliar com o romance a não ser que traduzam a linguagem de relatividade e de ambiguidade dele para o seu discurso apodítico e dogmático.

quinta-feira, maio 13, 2010

A Igreja e o Papa

Tem-se falado muito nestes dias sobre a Igreja Católica. Mas o que há para mim de interessante nisso não é o aspecto religioso, nem tão pouco o mediatismo das afirmações do Papa. O que há de interessante na Igreja é o facto de ser a única Instituição viva com 2000 anos de existência.

Olho para a Igreja como quem olha para um museu arqueológico, com a diferença de que num museu vemos objectos parados no tempo. A Igreja é uma Instituição que tenta, na medida das suas possibilidades, continuar viva.

O facto de a Igreja ser fundada numa religião resulta apenas do facto de há 2000 anos ser isso o que mais ligava as pessoas a uma identidade colectiva. Todas as instituições dessa época, ou desapareceram, ou transformaram-se noutra coisa.